sábado, 30 de maio de 2009

A INCONSTITUCIONALIDADE DAS COTAS PARA NEGROS NAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS

A polêmica sobre as cotas ressurge no Brasil com a decisão do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que suspendeu, agora em maio, a lei estadual 5.346, de 2008, que prevê o sistema de cotas para o ingresso, nas universidades estaduais, de estudantes negros, índios, egressos de escolas públicas e filhos de policiais e bombeiros. Sem discutir sobre os outros casos, os quais devem ser amplamente debatidos, posicionei-me há três anos sobre as cotas para negros nas universidades públicas brasileiras, entendendo-as por inconstitucionais. Segue o artigo que foi publicado em “O Jornal”.

AS COTAS PARA NEGROS NAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS
A ciência atual praticamente não diverge quanto à inexistência de raças humanas, vale dizer, para a ciência não há traços diferenciais essenciais na constituição genética de um negro, de um índio e de um branco por exemplo. A única raça existente é a do ser humano. A cor da pele e certas características físicas são apenas uma espécie de verniz que atestam, tão só, diferenças visuais, necessárias ante a limitação dos nossos sentidos. O conceito de raça, portanto, definitivamente não é genético.

Nem sempre, no entanto, se pensou assim. Desde Gobineau, as afirmações científicas centravam-se na existência e, pior, na desigualdade das raças. Os brancos, com uma cultura que logrou um rápido desenvolvimento tecnológico, foram sempre descritos como mais capazes que negros e índios. No Brasil, a importação das doutrinas científicas racistas e o mais longo período de escravatura dos negros registrado no globo desencadearam um grave processo de marginalização destes últimos cujos resultados repercutem até os nossos dias. Ainda hoje, afirma-se, é dificultoso para um negro concorrer em condições de igualdade com um branco. Fundados, principalmente, nesta assertiva, e, importando, novamente, uma idéia estrangeira, alguns autores e movimentos sociais convenceram o governo central e de alguns estados a adotar a chamada política de cotas para os negros nas universidades públicas brasileiras. Sem debates prévios, as cotas acabaram aprovadas acriticamente, em decisões apressadas e pouco democráticas. Os motivos favoráveis e, sobretudo, os contrários não sofreram o devido enfrentamento. Neste artigo, analiso apenas uma das questões colocadas, a da constitucionalidade desta política de ação afirmativa.

Parece-me inegável a constitucionalidade das cotas desde que o argumento central – dificuldade dos negros de concorrerem em condições de igualdade com os brancos – seja preciso no pertinente ao conceito de negros. Isto porque a razão do discrimine consiste, exatamente, em desigualar as atuais gerações dos brancos que foram beneficiadas, das atuais gerações dos negros prejudicadas com o processo de marginalização.

No entanto, precisar o conceito de negros esbarra em um fato de difícil transposição em um país como o Brasil. Com efeito, será possível enunciar que, tal qual nos Estados Unidos e na África do Sul, tenhamos uma nítida distinção entre negros e brancos? Definitivamente não. Somos uma nação racialmente misturada, com um sem-número de gradações de cor; somos o país dos pardos, dos morenos, dos mulatos, e, mesmo entre aqueles que consideramos brancos, há marcadores de ancestralidade genética comprovando, em 60% dos casos, linhagens maternas de origem africana ou ameríndia. As teses antropológicas de miscigenação de Gilberto Freyre, para quem a sociedade brasileira, “híbrida desde o início”, foi, entre todas as da América, “a que se constituiu mais harmoniosamente quanto às relações de raça”, encontraram, nos estudos científicos atuais, para além da comprovação, resultados que proclamam um cruzamento de raças muito mais forte do que se esperava.

A discriminação inversa, assim, que consiste em desigualar os desiguais para permitir que eles concorram em condições de igualdade, não pode vingar no caso da cotas para negros nas universidades do Brasil, uma vez que não é possível comprovar quais os efetivos descendentes dos negros que foram vítimas da marginalização. A regra das cotas, conseqüentemente, fere o princípio da isonomia e por isso é inconstitucional.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Liberdade e responsabilidade de imprensa

Parece-me que se afigura urgente o debate sobre a necessidade de uma nova lei de imprensa, ante a recente decisão do Supremo Tribunal Federal. O artigo que segue, fixa pontos importantes e esclarece algumas questões para isso.


FOLHA DE SÃO PAULO, “Opinião”. (São Paulo, quinta-feira, 07 de maio de 2009)
Por uma Lei de Imprensa
JOSÉ PAULO CAVALCANTI FILHO

DOS 191 países da ONU, só um não tem Lei de Imprensa. O Brasil. Alguma coisa está errada nesses números. Claro que sofremos, por tempo demais, com a pior Lei de Imprensa do planeta. Mas, pior mesmo, é não ter lei nenhuma.
Os jornais dizem que Inglaterra e Estados Unidos também não têm, só que são realidades diferentes. Não apenas por serem países da common law (com menos ênfase nas leis e mais ênfase nas decisões), mas, sobretudo, por não haver lá, sobre o tema, o vazio que agora passamos a ver por aqui.
A Inglaterra tem um Código de Ética jornalística desde 1938; e a House of Commons (seria o equivalente à Câmara dos Deputados) aprovou um código de procedimentos para a Press Complaints Commission (comissão de queixas da imprensa) que vem sendo consensualmente cumprido.

Nos EUA, ao lado da Libel Law (o capítulo dos crimes contra a honra do Código Penal federal norte-americano), temos vasto conjunto de regras espalhadas em diferentes normativas. O australiano Rupert Murdoch por exemplo, quando quis entrar naquele mercado, teve que se naturalizar americano por exigência da FCC (Comissão Federal de Comunicação, na sigla em inglês). Sem contar que, contra todas as tradições, o Congresso chegou a discutir, dez anos atrás, a adoção de algo como uma Lei de Imprensa, em um Libel Reform Act elaborado pelo Instituto Annenberg.
De parte essa observação estatística, cumpre ver quem ganha e quem perde com essa decisão do Supremo Tribunal Federal revogando nossa Lei de Imprensa. Jornalistas, com certeza, perdem.

Uma Lei de Imprensa democrática lhes garantiria direitos fundamentais, como a "cláusula de consciência", com a qual poderiam não assinar reportagens contra suas crenças ou ideologias sem ser demitidos por isso; teriam direito à "exceção da verdade", que os protegeria de processos; ou, dado exercerem o ofício de emitir opiniões, teriam tratamento penal diferenciado -a pena de privação da liberdade restaria limitada à reiteração de práticas eticamente reprováveis. Jornais também perdem.
Uma lei democrática levaria a que fossem processados apenas onde têm sede ou sucursais -evitando o que hoje ocorre com esta Folha, respondendo a processos dos filiados da Igreja Universal em mais de uma centena de fóruns. E não podem se aproveitar dos benefícios da "retificação espontânea da notícia" -usualmente deferida, nas legislações, com um estímulo a que os próprios jornais expressem a verdade dos fatos, independentemente do direito de resposta-, evitando, assim, condenações por indenizações.

Por fim, e sobretudo, perdemos nós, cidadãos. Os jornais relutarão em dar notícias com receio de processos em casos de oposição entre o direito à informação e o direito à privacidade -quando, segundo as leis de imprensa dos países culturalmente maduros, esses conflitos se resolvem "em favor do interesse coletivo da informação”. Também não haverá obrigatoriedade da identificação de reportagem paga, protegendo o leitor. Nem vasto conjunto de exigências do direito de resposta -como a gratuidade. À falta de uma legislação específica sobre o direito a resposta, vamos sofrer nas ações perante juízes que relutarão em aplicar um direito que, embora formalmente assegurado pela Constituição (artigo 5º, V), claramente só ganhará efetividade com a regulamentação que agora deixa de existir.
O exemplo dos Estados Unidos, nesse caso, não nos serve. Lá, mesmo constando em legislações estaduais, o direito de resposta foi declarado ilegal pela Suprema Corte (em 1974) no caso "Miami Herald" x Tornillo, por ofensa à Primeira Emenda. E, não obstante, os jornais usualmente o concedem, para evitar o risco de serem condenados a pagar indenizações quase sempre severas. A decisão do Supremo, dadas tantas evidências, permite duas visões.

Uma otimista, que se extrai do voto do ministro Ricardo Lewandowski -segundo o qual esse fato deve servir de estímulo a que o Congresso Nacional aprove uma nova lei, em substituição à agora revogada. Outra pessimista, que se vê nos discursos aligeirados, ufanistas e lamentavelmente equivocados, segundo os quais a decisão aprimora a democracia brasileira - como uma promessa negra de que tudo vai ficar como está. Seja como for, incorrigíveis otimistas, os brasileiros rogam ao Congresso, o mais rápido possível, a edição de uma nova Lei de Imprensa verdadeiramente democrática. Que garanta o máximo de liberdade na informação, sagrado direito de todos e de cada um, mas que também garanta o máximo de responsabilidade no exercício dessa liberdade.
JOSÉ PAULO CAVALCANTI FILHO , 60, é advogado, pós-graduado pela Universidade Harvard (EUA).

domingo, 17 de maio de 2009

ENTRE AS IMUNIDADES PARLAMENTARES E A IMPUNIDADE PENAL


O artigo que segue, publicado em um matutino local, é um resumo das minhas preocupações com o aumento da criminalidade, especialmente a criminalidade organizada, de uma categoria especial de agentes públicos/políticos: os parlamentares. O envolvimento de vereadores, deputados estaduais e federais e senadores com delitos das mais variadas espécies, de homicídios a corrupção e lavagem de dinheiro, tem sido notícia constante, com destaque para impunidade destes agentes. Em Alagoas, já houve quem chegou a afirmar que gostaria de ser deputado por conta das imunidades. Como não podemos esperar muito de um parlamento comprometido como o nosso (veja, por exemplo, a Emenda 45 que mudou o tratamento das imunidades para tudo continuar como antes), é preciso uma interpretação consentânea com os influxos do princípio constitucional da igualdade. Neste sentido, o STF deu um passo importante com o julgamento do HC 89.417. Nele, a Ministra Cármen Lúcia asseverou: a norma constitucional que cuida da imunidade parlamentar e da proibição de prisão do membro de órgão legislativo não pode ser tomada em sua literalidade, menos ainda como regra isolada do sistema constitucional. Os princípios determinam a interpretação e aplicação corretas da norma, sempre se considerando os fins a que ela se destina. Tomara que o Supremo, que como vimos na postagem anterior, não tem posição institucional, comece a firmá-la trilhando este entendimento.

Na Revista “Direito e Deveres” da Faculdade de Direito da UFAL, já no prelo, há um excelente ensaio, oriundo de um TCC, no qual fui orientador, que trata cuidadosamente do instituto das imunidades parlamentares. Recomendo.


Defendia Hannah Arendt a necessidade vital da afirmação do espaço político nas sociedades modernas, sociedades em que a condição humana revelou-se mais individual e econômica do que política e coletiva. Para ela, o mundo só pode ser compreendido como aquele no qual “pertencemos enquanto somos no plural”. Seguindo seus passos é possível entender os limites da modernidade que apenas avançou para uma democracia representativa e não até uma democracia participativa. De todo modo, é inegável a importância das democracias atuais e a correspondente atuação dos nossos representantes para a preservação da organização política e contra a ameaça do totalitarismo, tão rechaçado na obra arendtiana.

Ninguém questiona o valor dos parlamentos na construção permanente das democracias, bem como parece incontestável a necessidade de certas garantias para o livre exercício da atuação parlamentar. Estas garantias, hoje chamadas, genericamente, de imunidades parlamentares, foram gestadas, com os contornos atuais, no processo revolucionário francês, de onde se difundiram, ao longo dos anos, por toda a Europa. Embora mantidas, na atualidade, por países de forte tradição democrática, seu delineamento é exclusivamente restrito aos limites da atuação de senadores e deputados e, portanto, bem diferenciado daquele havido na Constituição brasileira e nas respectivas interpretações aqui produzidas.

Com um Judiciário independente, sem qualquer subordinação ao Executivo, consoante se afigura com o aprimoramento do sistema de separação de poderes, perde sentido o apego às imunidades conforme geradas na França revolucionária por receio dos juízes vinculados ao príncipe. Só para exemplificar, na França, dos nossos dias, as imunidades parlamentares são restritas às opiniões ou votos emitidos pelos parlamentares, os quais, fora das sessões do parlamento, podem ser presos como qualquer cidadão. Nos Estados Unidos os congressistas respondem pelos crimes comuns perante os juízes de primeiro grau, sem nenhum tipo de privilégio.

No Brasil, as imunidades vão muito além da necessária proteção aos votos e às opiniões relativas à ação parlamentar de senadores, deputados e vereadores. Elas se estendem para manifestações privadas, completamente desvinculadas da função de fiscalização da coisa pública e alcançam até as prerrogativas processuais, na verdade privilégios concedidos a senadores, deputados federais e deputados estaduais. As prerrogativas, da maneira como são correntemente compreendidas, chegam ao cúmulo de impedirem, por exemplo, a prisão de um parlamentar determinada pela Justiça por conta de um estupro, ou qualquer outro delito. As prerrogativas autorizam as Casas dos parlamentares processados a suspender, desde que decidido por maioria, a tramitação de um processo criminal por homicídio, corrupção passiva, ou outro crime comum. As prerrogativas determinam que deputados e senadores e até autoridades dos Poderes Executivo e Judiciário, sejam julgados por juízes diferentes daqueles que julgam o povo.

Não é sem motivos, pois, que construção da sistemática das imunidades, entre nós, levou, no decorrer dos anos, a uma impunidade escancarada de membros do parlamento federal e estadual, denunciada abertamente pela imprensa e por muitos juristas. Do modo como vêm sendo produzidas e interpretadas, constituem-se, sem quaisquer exageros, em uma licença para o crime, em uma autorização para delinqüir.

No Estado Democrático de Direito, as imunidades somente podem vingar como prerrogativa que objetiva garantir, exclusivamente, o livre exercício da função parlamentar. E mesmo diante de um sistema constitucional que precisa de modificação, só encontram significado quando o crime cometido pelo parlamentar estiver estritamente vinculado a sua atuação prevista em lei. Seria ofender, abertamente, o princípio constitucional da igualdade, reconhecido pela Constituição como Direito Fundamental, admitir a utilização dessa técnica para afiançar os crimes comuns praticados pelos parlamentares. Já é hora do Judiciário filiar-se, em suas interpretações, a essa tendência contemporânea.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

A CONTENDA DE GILMAR E JOAQUIM TRATADA DA FORMA CORRETA

Não obstante ser propósito deste espaço a publicação de artigos produzidos pelo autor do blog, excepcionalmente publicaremos outros escritos, principalmente quando a reflexão seja relevante, como é o caso do artigo publicado na Folha de São Paulo, edição de 11.05.09, por Vírgílio Afonso da Silva, prof. da Faculdade de Direito da USP e Conrado Hübner Mendes, prof. licenciado da Escola de Direito da FGV. A questão referente ao desentendimento público dos Ministros do STF Joaquim Barbosa e Gilmar Mendes serve, apenas, como mote, para tratar do principal: a forma da tomada de decisões e a necessidade de uma voz institucional no STF. Como já comungava desta idéia e por conta de ser, ao que me pareceu, o escrito mais sensato que tratou da cizânia entre os julgadores do Supremo, segue na íntegra:

São Paulo, segunda-feira, 11 de maio de 2009 FOLHA DE SÃO PAULO

ENTRE A TRANSPARÊNCIA E O POPULISMO JUDICIAL

VIRGÍLIO AFONSO DA SILVA e CONRADO HÜBNER MENDES

O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL vem ocupando espaço crescente na cena política brasileira. Não há mais novidade nessa constatação. Nesses últimos dias, porém, o tribunal foi destaque dos noticiários não tanto por ter decidido mais um dos casos fundamentais de sua agenda, mas pela discussão destemperada entre dois dos seus ministros, transmitida pela TV e disponível na internet.
Esse fato despertou uma saudável discussão sobre a conveniência da transmissão ao vivo dos julgamentos do tribunal. No último dia 2 de maio, neste mesmo espaço, duas posições se confrontaram.
De um lado, Carlos Velloso, ex-ministro do STF, defendeu que o televisionamento não seja ao vivo, mas editado conforme a relevância jurídica dos debates, de modo a manter o prestígio e a imagem de austeridade do tribunal.

De outro, o professor Gustavo Binenbojm argumentou que a iniciativa de restringir as transmissões evocaria a tradição superada das cortes como "seitas secretas" e levaria a uma perda de transparência possivelmente conquistada nos últimos anos, um exemplo original para o mundo.
Essa pode ser uma das raras oportunidades de estimular um bom debate público sobre os costumes decisórios do STF, aspecto mal percebido e geralmente ofuscado pelos polêmicos casos julgados diuturnamente pelo Supremo. Esse debate, no entanto, pode e deve ir além da discussão sobre a transmissão de seus julgamentos pela TV (ao vivo ou editados).
Parece-nos que a questão central é outra: quais condições institucionais contribuem para que o tribunal alcance as melhores decisões possíveis?

A transmissão ao vivo é apenas uma entre muitas variáveis que determinam o modo pelo qual os ministros interagem e decidem. Não pode ser discutida de forma isolada.
Não há espaço aqui para examinar todas essas variáveis. Mesmo assim, como ponto de partida, vale a pena destacar um senso comum equivocado que parece se esconder por trás de muitas discussões sobre o STF.Transmissões ao vivo e acórdãos disponíveis na internet, entre outras medidas, criaram um mito de transparência que precisa ser desconstruído. Ao contrário do que muitos tentam fazer crer, publicidade e transparência não têm nenhuma relação direta e necessária com a quantidade de julgamentos transmitidos pela TV.

Um tribunal constitucional transparente é aquele que decide com base em argumentos transparentes, que não disfarça dilemas morais por trás de retórica jurídica hermética, que não se faz surdo para os argumentos apresentados pela sociedade. Em suma, é aquele que expõe abertamente os fundamentos de suas decisões para que sejam escrutinados no debate público.
Contudo, se nos perguntarmos o que o STF pensa sobre várias das questões constitucionais relevantes, dificilmente alguém saberá responder com precisão, a despeito da quantidade de decisões disponíveis na internet e de julgamentos transmitidos pela televisão.

Com maior frequência, o que se pode identificar nesse emaranhado de decisões, disponíveis às vezes quase em tempo real, é tão-somente a soma de 11 decisões individuais, que não têm a menor pretensão de construir uma posição institucional consistente. Ainda que a dissidência interna possa ser saudável, ela não pode implicar uma falta de compromisso com uma posição institucional.
O debate sobre a forma de decisão no Supremo, sobre a ausência de uma voz institucional -em grande parte causada pela insistência em privilegiar as vozes individuais de seus ministros-, é o que mais importa. E, se consistência decisória é uma das maiores contribuições que um tribunal como o STF poderia dar a uma democracia, pode-se dizer que ele tem falhado nessa tarefa.

Embora a transmissão ao vivo de suas sessões não seja a causa dessa falta de unidade institucional, não é implausível especular que ela a intensifique. Se descobrirmos que é isso o que ocorre, há que pensar a sério em alternativas. Todos temos palpites a respeito, mas a resposta não é óbvia e exige mais estudo.
Saber se a discussão entre os ministros Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa fere a imagem do tribunal não é tão relevante quanto o sintoma que esse episódio pode representar: alguns ministros começam a aproveitar o "momentum" televisivo para dirigir-se exclusivamente ao público externo, em vez de interagir entre si, no melhor espírito de uma deliberação colegiada. Tornam-se celebridades, o que é perigoso.Talvez estejam produzindo, a título de uma sedutora transparência de superfície, um indesejável populismo judicial. O tribunal vende uma e entrega o outro. E não percebemos.

domingo, 10 de maio de 2009

O RIO, O BISPO E O DIREITO DE RESISTÊNCIA

O artigo abaixo foi publicado em “O Jornal” (coluna “Opinião”) quando a imprensa brasileira, aqui entendida como os grupos dominantes da mídia nacional, criticava, na esteira do Governo Federal, o jejum do Bispo de Barra, Dom Cappio, contra a transposição do rio São Francisco. Alterei apenas o tempo dos verbos, mas o texto permanece atual como o problema da transposição. A publicação no Blog vale, parece-me, pelo silêncio sepulcral que se fez no Brasil sobre o tema após o começo (!?) das obras. Vale ainda para que nós, tão mundanos e presunçosos, reflitamos, sempre, sobre as nossas ações e nossa soberba.

O RIO, O BISPO E O DIREITO DE RESISTÊNCIA

O rio São Francisco é um patrimônio do mundo. O maior rio nacional do Brasil banha os estados de Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas, drenando uma área aproximada de 641.000km². Não é à toa, portanto, que é chamado de rio da integração nacional. Porém, o velho Chico vem claudicando nas últimas décadas em razão dos estragos produzidos pelo ser humano na natureza. Intervenções em seu curso para barragens e hidrelétricas, destruição das matas ciliares, poluição generalizada e maltrato idêntico aos seus afluentes tem sido fatores que contribuem para sua degradação.

Acompanhando, de perto, o sofrimento do rio e das populações ribeirinhas, o frei Luiz Flávio Cappio, bispo de Barra na Bahia, insurgiu-se contra o projeto de transposição encampado pelo governo do Presidente Lula e modelado, principalmente, na gestão do então Ministro da Integração Nacional, o cearense Ciro Gomes, o principal defensor da idéia. A insurgência pautava-se pela ausência de um amplo debate público sobre o projeto governamental em confronto com as críticas e alternativas existentes, conforme prometido pelo próprio Presidente da República. A forma adotada para a revolta contra a posição do governo foi o jejum ou, como etiquetou a mídia, a “greve de fome”, que durou, aproximadamente, um mês e deixou Cappio oito quilos mais magro.

Diferente da ação de muitos setores da sociedade civil – que só pensam nos seus interesses coorporativos e em questões burlescas –, a “greve” do bispo foi plural e democrática. Centrou-se, é claro, na preocupação com as populações ribeirinhas que ele tanto conhece, mas foi (é) extensiva a todos nós e às futuras gerações. Para além, sua posição encontrou amparo ecocêntrico em virtude de considerar os outros seres vivos, animais e vegetais e mesmo não vivos, como os minerais e a própria água.

O jejum de Cappio deve ser lembrado e, inclusive, reconhecido juridicamente, como exercício do direito de resistência, implicitamente extraído da Carta Constitucional. Os princípios da dignidade da pessoa humana e do pluralismo político, erguidos como alicerces do Estado Democrático de Direito, permitem a integração para o interior da ordem constitucional, não há dúvidas, de outros direitos decorrentes do regime e dos princípios pela Constituição adotados. É o caso do direito de resistência, o qual revela, não só uma perspectiva jurídica, mas uma forte dimensão política, aqui compreendida no sentido escorreito do vocábulo.

A ação do bispo, de modo algum, deve ser lembrada como desproporcional, louca, autoritária ou contrária aos mandamentos cristãos como atacaram os ávidos mensageiros do Planalto, aqueles que têm interesse na transposição e alguns críticos apressados por descredenciá-lo. Seu jejum gritou, e ainda ecoa, por uma grande discussão nacional acerca dos impactos ambientais produzidos pela transposição, suas prováveis conseqüências nefastas e as alternativas que são viáveis. Sua “greve” perseguiu a transparência cabal e a boa utilização dos recursos públicos vultosos pertencentes ao contribuinte brasileiro: quanto vai custar à transposição? Quais são as empreiteiras destinadas a assumir a obra? Para quem se destinará a água? Quanto custará e quem pode pagar por ela? Sua “fome” se irmanou à fome das populações ribeirinhas que nunca tiveram suas terras irrigadas, sem embargos do rio margear suas pequenas glebas.

Brecht afirmava que há homens que lutam um dia e são bons; há aqueles que lutam anos e são muito bons; mas há os que lutam a vida inteira, estes são os imprescindíveis. Dom Cappio foi além, lutou se doando. Seu jejum foi um gesto franciscano, franciscano como ele e o rio. No seu embate-doação nos ensinou sobre os possíveis efeitos do deslocamento das águas, todavia, sua lição principal – não podemos olvidar –, é pertinente a cidadania, ou seja, à insurgência contra as más políticas públicas e as impropriedades dos governantes, sem interesses próprios em jogo. Sua ontologia de vida, por mais que não se enquadre na dinâmica relativista das sociedades pós-modernas, admira e impacta a todos nós – pobres críticos de botequins, gabinetes e redações – por revelar a beleza de amar mais que ser amado.