segunda-feira, 30 de novembro de 2009

CASO CESARE BATTISTI: POLÍTICA ELEITORAL , EMOÇÃO E ATECNIA

   A questão em torno do caso Battisti não é outra senão uma questão político-eleitoral, máxime por conta das eleições de 2010. Mas, há nela, também, um componente de emoção provocado pelo excesso midiático em torno do caso. Emoção, de um lado, de esquerdistas dispostos às mais absurdas escusas para o perdão de um novo ícone formado pela imprensa, de outro, dos idiotas de direita que vendem o capitalismo e suas almas como o mais bem acabado e irreversível modelo econômico e se acham inteligentes e perspicazes em face de um Presidente da República que eles teimam em retratar por bronco e atrasado. Resumindo, não temos tido oportunidade de uma discussão mais afeita aos meandros técnicos do direito penal e do direito internacional público, senão mais um debate grosseiro entre partidários da oposição e governistas visando à eleição presidencial, de autoridades italianas e brasileiras e de obtusos de direita e delirantes de esquerda aqui no Brasil.

   Acertou, parece-me, o Pretório Excelso, quando, por apertada maioria, decidiu que os delitos atribuídos a Battisti tratavam-se de crimes comuns. O parâmetro internacional da preponderância, que rege o processo extradicional no plano do direito internacional, determina a possibilidade da extradição quando o fato constituir, principalmente, infração da lei penal comum. Não tenho a mínima certeza se Battisti, de fato, foi o responsável pelos assassinatos pelos quais foi condenado. Não tenho dúvidas, entrementes, de que o estado de direito estava comprometido em uma Itália conturbada conforme denunciou a Anistia Internacional. Mas ele foi condenado e, em pelo menos uma das condenações, o móvel do homicídio foi a vingança, absolutamente despida de qualquer conexão com crime político. Isto é o que basta, pois não cabe ao Estado requerido a análise acerca do mérito da decisão proferida no Estado requerente, que, neste ponto específico, apenas necessita provar que tem jurisdição.

   Doutra banda, embora não disponha de elementos para fazer uma afirmação apodíctica, as notícias veiculadas nos meios de comunicação levam-me a crer que a prescrição da pretensão punitiva ocorreu no caso em testilha, como, inclusive, votou o Ministro Marco Aurélio. De logo, esclareço que a Lei 6.815/80 dispõe, em seu artigo 77, VI, que não será concedida a extradição se estiver extinta a punibilidade pela prescrição regida pela lei brasileira ou pela legislação do Estado requerente. Pois bem, por uma simples consulta ao artigo 109, I, do Código Penal Brasileiro, vislumbra-se que a prescrição longissimus tempus ocorre após vinte anos para todos os delitos prescritíveis com penas máximas em abstrato superiores a doze anos, como é o homicídio. Recordem que as condenações ocorridas foram por homicídio. Se for correta a informação de que a última sentença condenatória, de primeiro grau, é datada de 1988, os delitos estão prescritos, pois o acórdão confirmatório posterior não é causa suspensiva nem interruptiva da prescrição. O fluxo do prazo prescricional só é interrompido pelo acórdão quando este, modificando a sentença absolutória, condena o réu.

   Finalmente é necessário esclarecer que o Supremo Tribunal Federal só tem a derradeira palavra em hipótese de extradição, vinculando, inclusive, o Presidente da República, quando, em homenagem ao status libertatis, a decisão é denegatória. Decidindo, o STF, pela possibilidade da extradição, cabe ao Presidente, no exercício de seu poder político e na sua prerrogativa exclusiva de regência das relações do Brasil com os outros estados soberanos (CF, art. 84, VII), deferir ou não a medida.

   O Presidente, é cediço, representa todos os brasileiros perante os demais países. Luis Inácio Lula da Silva, gostem dele ou não, encarna bem a representatividade do Brasil, pois carrega consigo 58 milhões de votos dos brasileiros, algo próximo à totalidade da população italiana, isso para não mencionar os seus atuais índices de aprovação.

   Pela apertada decisão do Supremo quanto ao próprio conhecimento do processo de extradição em face do refugio concedido, pela divisão verificada na Corte quanto à definição da natureza do crime, pela prescrição existente ou brevemente vindoura, pela postura bisonha das autoridades italianas, pela posição de mais de uma década do governo da França, que, com base na Doutrina Miterrand, acolhia ativistas de esquerda que tivessem abandonado a luta armada, pelo mau exemplo do governo Fernando Henrique no caso dos seqüestradores canadenses, pelo perdão aos torturadores da ditadura militar brasileira e a sórdida equiparação com eles dos que a ela resistiam, pela valoração política que a vida e não a academia o ensinou, Lula, penso eu, não concederá a extradição de Battisti.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

ZUMBI DOS PALMARES E A LIBERDADE

  A liberdade, não há questionamentos, é um dos pilares essenciais no Estado Democrático de Direito forjado pela modernidade no ocidente. Embora conceituada como direito fundamental do ser humano e retratada nas Declarações de Direitos e nas constituições da maioria dos estados soberanos, a liberdade é, parece-me, mais fácil de ser sentida do que ser explicada. No modelo do Estado Democrático de Direito a noção de liberdade não pode ser compreendida sem ter conta a noção de legalidade. Se o projeto da modernidade carecia de um ser humano autônomo, a liberdade somente poderia ser entendida como ausência de obstáculo a vontade do indivíduo. Mas, será livre aquele que pode fazer o que quer, ou será escravo dos seus desejos? Movimentamos nossos passos com autodeterminação, ou não passamos de marionetes comandadas pela força oculta do inconsciente?


  A modernidade nos legou a autonomia, nos fez crer no poder ilimitado da razão, porém no nosso tempo pós-moderno, heterogêneo, dinâmico, desordenado, essencialmente incontrolável e indeterminável e, por isso, assustador, nos vemos, e pior, nos sentimos cercados por muitos muros. Rodeia-nos os tijolos dos condomínios distantes, as cercas elétricas de prédios e casas, a blindagem de nossos carros. Há, ainda, as muralhas invisíveis, aquelas que fazem o cerco oprimindo-nos a consumir de sanduíches intragáveis, a fármacos e próteses que prometem beleza e sexualidade infinita. Não é à toa que nem as endorfinas, nem as drogas (legais e ilegais), nem sequer a ignorância, nos liberta daquele vazio, daquela insatisfação que, embora momentânea, aprisiona nossa alma.

  Foi sentindo e não explicando a liberdade que os negros de Palmares e dos demais quilombos brasileiros lutaram contra o europeu escravocrata. Talvez por isso, muitos não compreendam que eles não poderiam reclamar a liberdade como categoria universal, ou mesmo implantá-la, plenamente, para a sociedade que haviam edificado. Suas aspirações não são outras, senão a liberdade “elementar sem a qual a existência humana já não tem sentido”. Entrementes, a reação dos quilombos afigura-se como etapa fundamental para a emancipação dos negros. Ela foi símbolo das insurreições posteriores e, certamente, decisiva para a abolição.

  Desde que a escravatura tornou-se o sistema de exploração geral das terras, introduzido em Alagoas por volta de 1570, houve, como conseqüência automática, a fuga dos negros para formação de quilombos. Eram povos vindos de todos os cantos da África, com religiões, línguas, costumes e culturas diferentes, convergindo, após as evasões, para um ponto distante na floresta brasileira. Sua união é marcada por, praticamente, uma única aspiração em comum: o sentimento de liberdade.

  No dia 20 de novembro de 1695, portanto há três séculos e quatorze anos, Zumbi morreu combatendo o poder escravocrata em terras dos Caetés, os índios que devoraram antropofagicamente uma das mais simbólicas personificações do poder europeu em solo pátrio.

  Zumbi, que nasceu livre em Palmares, tinha, por mais paradoxal que isso possa parecer, a liberdade como prisão. Sua guerra contra o inimigo, na visão de Benjamin Péret, é uma luta obrigatória, um combate sem escolhas, uma vez que sua autoridade no quilombo residia, principalmente, na recusa da paz aceita por Ganga-Zumba e na destituição deste último, para a qual colaborou. A campanha armada de Zumbi, não se pode duvidar, tinha como estandarte a vitória com a conseqüente realização do sonho de liberdade, ou a morte, preferível ante ao jugo do opressor. É um legado contra toda opressão material, resta-nos, ainda, aprender sobre o banzo que, tal qual componente atávico, se manifesta, larga e estranhamente, entre os brasileiros.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

EXPANSÃO PENAL VERSUS INTERVENÇÃO MÍNIMA

O artigo que segue é resumo de parte do que será tratado em nosso livro “Direito Penal Constitucional”, com publicação prevista para os próximos seis meses. Sintetizo, aqui, a questão confundida por setores da doutrina entre intervenção mínima e expansão penal. Em escrito já publicado pela Revista do Mestrado em Direito da Universidade Federal de Alagoas, aliás, já tive oportunidade de fazer ver a devida compatibilidade entre o princípio constitucional penal da intervenção mínima e a tendência expansionista do Direito Penal contemporâneo. Essa discussão será aqui relançada com algumas propostas para reflexão.




É preciso distinguir a intervenção mínima, como meta de política criminal, do princípio constitucional da intervenção mínima, embora, por evidente, guardem estreita relação. Uma política criminal que se caracterize pela diminuição do Direito Penal nos parece sempre bem vinda por todos os problemas gerados pela aplicação das sanções penais, mormente pela pena privativa de liberdade. Entre nós, uma política criminal dessa natureza sempre foi encorajada por setores da doutrina, mas, na realidade, nunca encontrou eco nas ações do governo que, ao contrário disso, em todo tempo, encampou atuações panpenalistas.

A intervenção mínima como política criminal não se apóia no velho argumento iluminista, como faz ver Zaffaroni, e, sim, no fato de que, enquanto houver modelos ou formas de decisão de conflitos mais violentas, é necessária a permanência do Direito Penal como programação da operacionalidade do órgão judiciário. No momento em que o conflito se situar fora do poder verticalizador do sistema penal, submetendo-se a soluções menos violentas, ou mesmo liberado, quando não for preciso uma solução, é possível contrair o discurso jurídico-penal e diminuir a abrangência penal. (ver ZAFFARONI, Eugenio Raúl. En busca de las penas perdidas – Deslegitimación e dogmática jurídico-penal, 2ª ed., Bogotá: Temis, 1993, p. 84).

Já o princípio constitucional da intervenção mínima, informado pela racionalidade dessa política criminal, no marco do Estado Democrático de Direito, substancializa o princípio da legalidade penal para, intra-dogmaticamente, impor ao legislador uma rígida predeterminação acerca do processo de qualificação do delito, somente autorizando-o a criminalizar condutas a partir das hipóteses de ofensas mais graves aos bens jurídicos com status constitucional (os mais importantes) e, ainda assim, quando outras respostas (v.g. civil, administrativa, mediação etc) não forem satisfatórias para a solução do conflito (subsidiariedade e adequação).

Os parâmetros de fabrico da criminalização ditados pelo princípio pretendem separar uma ampliação do Direito Penal sem contato com a realidade, irracional e, portanto, esquizofrênica, de uma expansão baseada nas necessidades criminalizadoras advindas das complexidades da sociedade atual, de novas realidades ou mesmo de situações antigas, mas, em face do contexto moderno, que reclama, racionalmente, a intervenção penal.

Nessa lógica, não há nenhuma antinomia entre o princípio da intervenção mínima e uma expansão do Direito Penal, o qual sempre é preferível ante a alternativas piores, como o surgimento da vindicta privada em alta escala (v.g. vingadores, grupos de extermínio, milícias, deliberações penais marginais etc), ou até pela possibilidade de mecanismos severos de controle e vigilância do comportamento humano por parte do Estado, como forma preventiva da conduta infracional.

Os freios impostos pelo princípio são, antes de qualquer coisa, pressupostos fundamentais para a construção do delito baseados na proporcionalidade entre a liberdade individual e a liberdade do alter ou, dizendo de outra maneira, entre a liberdade do indivíduo e a possibilidade de coexistência.

A própria Constituição, ainda como imposição de conteúdo, não olvida a necessidade de criminalização para preservação dos direitos essenciais à convivência, determinando, de certo modo, um alargamento do Direito Penal sem perder de vista as irradiações do princípio na diminuição de criminalizações.

Uma resposta para enfrentamento do problema da criminalidade que ameace os interesses, efetivamente, mais caros de uma sociedade, e não aqueles que ponham em xeque a autoridade estatal pode ser encontrada, sem máculas, nos princípios constitucionais penais. Propus, por isso, em tese de doutorado, uma divisão das infrações penais segundo as possibilidades de sanção. Sugeri que fosse designadas: a) infrações de baixa intensidade punitiva; b) infrações de média intensidade punitiva; c) infrações de intensidade punitiva moderada e d) infrações de alta intensidade punitiva.

As primeiras abrangeriam todas as infrações penais com previsão de penas de multa e prisão simples, assegurando-se que a prisão simples somente poderia vingar com a quebra da pena de multa ou restritiva de direito. Ante tal pressuposto, segue a possibilidade de flexibilização de algumas garantias, a previsão de procedimentos judiciais céleres e amplos mecanismos de transação. Nesta seara, se amoldariam todos os delitos praticados pelas pessoas jurídicas e todas as contravenções penais.

As segundas compreenderiam os crimes hoje chamados de infrações de menor potencial ofensivo, delitos com previsão de pena de prisão nunca superior a dois anos, bem assim, aqueles crimes cuja pena mínima não fosse superior a um ano e se amoldasse à possibilidade de Suspensão Condicional do Processo. A resposta continuaria a ser a prevista na Lei dos Juizados Especiais Criminais (Lei 9.099/95).

As infrações de intensidade punitiva moderada seriam todas aquelas não contidas entre as segundas e cuja pena máxima privativa de liberdade, prognosticada em abstrato, não ultrapassasse oito (08) anos. Para este grupo aplicar-se-ia as regras penais vigentes, inclusive no que tange às garantias e à execução da pena.

Por fim, as infrações de alta intensidade punitiva alcançariam todos os crimes com penas máximas superiores a oito (08) anos. Nelas, observando-se, estritamente, os princípios constitucionais penais, o legislador poderia flexibilizar algumas garantias processuais, por exemplo, ampliando as possibilidades de provas relativas ao sigilo fiscal, bancário e de comunicações – o que seria possível estender às infrações de intensidade moderada –, e permitir ao juiz, ao examinar cada caso concreto, cotejando-o com os princípios e os mandamentos constitucionais de criminalização, determinar a prisão provisória pelo dobro do prazo atualmente previsto; antecipar a execução a partir da sentença condenatória não transitada em julgado; impossibilitar a progressão senão quando cumprida dois terços da pena cominada; determinar, por prazos curtos, regimes prisionais diferenciados; estabelecer fiscalizações mais rígidas no que toca à liberdade condicional, além de outras medidas, de igual força, para responder, proporcionalmente, ao delito praticado, sem instituir o estigma de “inimigo” ao infrator, nem macular qualquer garantia constitucional.

As sociedades modernas carecem de respostas mais rápidas e efetivas. As mudanças de paradigma em face da complexidade dos novos fenômenos sociais, no entanto, não deve nos deixar tentados às soluções alienígenas, é preciso ir em busca das nossas próprias respostas sem quebrar o pacto racional que reconhece o ser humano e sua dignidade como fim do Estado.

No Brasil contamos com um Sistema de Justiça Criminal inoperante, e disso decorre o mesmo problema que nos persegue a tantos lustros, não cumprir as normas instituídas. Temos um sistema processual, não obstante algumas mudanças bem vindas, atrelado à década de quarenta e, ainda, extremamente cartorial marcado pelo abusivo número de recursos que, na prática, vem inviabilizando a realização do direito material. Pari passu às modificações na dogmática penal, necessárias e já em curso, consoante sinalizou a própria Constituição com os princípios constitucionais penais e os mandamentos de criminalização, não podemos esquecer as necessárias transformações no direito instrumental, mas este já é assunto para outro momento.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

PARA A CÁTEDRA DO PROCESSO PENAL

Em cinco de novembro de 1993, há exatamente dezesseis anos, o ex-governador da Paraíba Tarcísio Burity, do PMDB, almoçava em um restaurante, em João Pessoa, acompanhado por conhecidos. Por volta das 14 horas, ingressou no estabelecimento o então governador Ronaldo Cunha Lima, também do PMDB, e disparou dois tiros, atingindo o seu antecessor de surpresa, impossibilitando qualquer reação defensiva, deixando-o em coma por duas semanas, segundo a Procuradoria da República.

O Ministério Público federal apresentou denúncia contra Cunha Lima no Superior Tribunal de Justiça, instância competente para julgar os governadores pelos crimes comuns. O STJ pediu, então, autorização à Assembléia Legislativa da Paraíba para processá-lo, mas o pedido foi negado. Entendendo não restar outro caminho, o Tribunal determinou sobrestamento dos autos enquanto ele estivesse no exercício do cargo.

No ano de 1994, Cunha Lima renunciou ao cargo de governador para concorrer ao Senado. Os meses que permaneceu sem cargos, no entanto, não bastaram para que fosse julgado. Eleito e diplomado senador, o foro deslocou-se para o Supremo Tribunal Federal, e, em 1995, os autos lá chegaram. No mesmo ano, o STF solicitou licença ao Senado para julgá-lo, entretanto o Senado negou o pedido, com o disparatado argumento de que postulação semelhante havia sido negada pela assembléia paraibana. Mais uma vez os autos foram sobrestados. Porém, em face da Emenda Constitucional 35, de 2001, que permitiu ao Supremo julgar parlamentares sem necessidade da licença prévia, a ação tornou a tramitar no ano de 2002.

A tramitação processual no STF arrastou-se por mais de 5 anos e o julgamento do acusado foi designado, coincidência ou não, para o dia 5 de novembro de 2007, quando o crime completou 14 anos. Todavia, cabalisticamente, 5 dias antes do julgamento, Cunha Lima renunciou ao cargo de deputado federal que então exercia, obrigando, segundo o entendimento formal, o deslocamento de foro, agora para a Justiça Estadual de 1ª instância.

Como se a kafkiana legislação brasileira sobre a prerrogativa de foro não bastasse, questionado acerca da renúncia, Cunha Lima afirmou, desdenhando: “quero ser julgado por meus iguais, o povo”, enquanto o Ministro Relator, Joaquim Barbosa, agastado, considerou a fala “um escárnio para com a justiça brasileira e especialmente para com o Supremo Tribunal Federal”, esperando “que haja juízes corajosos e independentes na Paraíba para julgá-lo”.

Os discursos do réu e do Ministro, sendo diferentes, se complementaram e confirmaram uma tese. O primeiro defendeu, no fundo, que é possível burlar a lei valendo-se dela própria. O segundo, com manifesta revolta, mas sem contestação, aquiesceu, como se não houvesse possibilidades interpretativas ao seu dispor.

“Interpretar uma expressão do Direito não é outra coisa senão revelar o sentido apropriado para a vida real, e conducente a uma decisão reta”. Os valores, afirmava Reale, não se explicam segundo nexos de causalidade e isso conduz o juiz à missão de, na aplicação da norma, vencer os óbices criados por leis prenhes de individualismos. Se a renúncia foi uma burla, como reconheceu o próprio Ministro, a solução para o caso seria a prorrogação da competência do STF, com o julgamento do acusado na Suprema Corte, afinal, ninguém pode tirar proveito de sua própria torpeza.

O ministro mudou e sustentou a tese defendida por nós, a da prorrogação da competência, mas foi vencido e o Supremo Tribunal, que ainda tinha a chance julgar Cunha Lima determinou o encaminhamento dos autos para o Tribunal do Júri de João Pessoa. Não obstante o promotor tenha ratificado a denúncia e o juiz já tenha o pronunciado, dificilmente ele será condenado pelo crime. As im(p)unidades, a demora processual, robustecida com a infinidade de recursos previstos no nosso ordenamento e a idade de agora do réu, que reduz os prazos prescricionais, conspiram para que ele sequer seja julgado no pertinente ao mérito. A questão torna patente a incapacidade do STF para esses julgamentos e deixa nítida a necessidade de restrição ou mesmo de abolição do foro privilegiado, afinal, como quer Cunha Lima – mesmo que suas intenções não tenham sido nada nobres –, aqueles que julgam o povo devem julgar os governantes, seus iguais.