quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

O NOVO ANO


                                                                                                                  Eheu fugaces... labuntur anni.
                                                                                                                                                              Horácio (65-8 a.C.)

 O que significa um novo ano? Apenas a mudança convencionada em um calendário? Felicitações e desejos de prosperidade, paz, saúde etc? Mais uma norma social? Ou um projeto de vida que costumamos fazer sempre de um dia para outro e, nesta oportunidade, o fazemos acreditando mais, por conta do maior prazo? Tudo isso junto. Somos, como dizia Pessoa, “escravos cardíacos das estrelas. Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama; mas acordamos e ele é opaco, levantamo-nos e ele é alheio, saímos de casa e ele é a terra inteira, mais o sistema solar e a Via Láctea e o indefinido”. No fundo, as promessas de um novo ano, não aquelas desejadas aos outros, mas a nós mesmos, são promessas de conquistas próprias, as quais, o amanhecer do primeiro dia de janeiro nos encarrega de, como o sol, demonstrar a realidade das coisas. Se é importante sonhar? Sim, eu acredito que sonhos possam, de alguma forma, lograr, mas tudo é passageiro e a realidade implacável nos persegue avisando-nos disto. O próprio término do ano, não deixa de ser um anúncio apodíctico do efêmero. É certo, a vida prossegue veloz em seu curso instável. Talvez os loucos, as crianças, ou, quem sabe, os ingênuos não se libertem para essa escravidão. Talvez os mais incomodados se entorpeçam no final de cada ano - e em quase todos os dias do subsequente -, na embriaguez que os liberta da liberdade do real. Mas o que sei eu do real? Nada, a não ser que o tempo corre pondo “umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens”, mas, ainda assim, vamos, porque não, comemorar, cantar e brindar o nascer do novo ano.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

O CASO ABDELMASSIH

 Não é propósito deste espaço a transcrição de artigos alheios, entretanto, vez por outra, não há como não ceder. O texto do Fernando de Barros e Silva pareceu-me preciso sobre o caso Abdelmassih, por isso segue na íntegra. Para além, faremos, a partir dele, uma série de reflexões sobre o processo penal no Brasil.

 Folha de São Paulo, segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

 FERNANDO DE BARROS E SILVA

 O caso Abdelmassih

 Vamos começar fazendo três perguntas: 1. Quantas pessoas estão encarceradas hoje no país, em regime de prisão preventiva, sem que ainda tenham sido julgadas? 2. Quantas, entre as pessoas que se encontram nessa condição, chegam a ter seus pedidos de soltura apreciados pelo Supremo Tribunal Federal? 3. E quantas conseguem ver seu caso atendido em apenas quatro meses pelo presidente da mais alta corte do país?

 A resposta talvez conduza à conclusão de que o doutor Roger Abdelmassih é um homem de sorte. Ou que pagou os advogados certos. O jornal "Le Monde" tinha razão, mas pegou leve ao dizer que nosso Judiciário é "preguiçoso". Às vezes, só às vezes, é ágil até demais.

 O habeas corpus de Gilmar Mendes, que, no recesso da Justiça, libertou o médico acusado de molestar sexualmente pelo menos 39 mulheres, causa óbvio mal-estar. As vítimas (supostas?) depositavam na expertise do doutor a esperança de engravidar - e a situação de vulnerabilidade física e emocional em que foram atacadas, conforme os relatos, confere ao escândalo feição especialmente repugnante.

 Os leigos estão cobertos de razão ao manifestar indignação diante da decisão judicial, não obstante suas "razões técnicas". Mendes sustenta que a prisão preventiva não pode representar a "antecipação da pena". Tem sido uma das suas brigas.

 Mas podemos inverter o raciocínio e indagar se o Judiciário, refém e cúmplice das chicanas de advogados "influentes", não patrocina, com suas peças intermináveis, um patético teatro da impunidade?

 Não há como fugir à evidência revoltante de que, tendo dinheiro e/ ou fama - e advogados a preço de ouro -, o sujeito, não importa o que tenha feito de terrível, cedo ou tarde se dá bem. Sim, sabemos que cabe à Justiça zelar pelos direitos dos indivíduos contra o clamor às vezes cego da maioria. Mas nossa prática jurídica não raro invoca esse princípio para dar guarida aos aspectos mais abomináveis do privilégio.


terça-feira, 22 de dezembro de 2009

OS PARADOXOS DO NATAL

Aos cristãos para, quem sabe, uma interpretação (alegórica) do texto que permita a contradição:

"Ouvistes o que foi dito: Olho por olho, dente por dente. Eu, porém, vos digo: não resistais ao mau. Se alguém te ferir a face direita, oferece-lhe também a outra. Se alguém te processar para tirar-te a túnica, cede-lhe também o manto. Se alguém vem obrigar-te a andar mil passos com ele, anda dois mil. Dá a quem te pede e não voltes as costas ao que deseja um empréstimo.

Ouvistes o que foi dito: Amarás o teu próximo e poderás odiar teu inimigo. Eu, porém, vos digo: amai vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, orai pelos que vos [maltratam e] perseguem para serdes filhos de vosso Pai do céu, pois ele faz nascer o sol tanto sobre os maus como sobre os bons, e faz chover sobre os justos e sobre os injustos.

Se amais somente os que vos amam, que recompensa tereis? Não fazem assim os próprios publicanos? Se saudais apenas vossos irmãos, que fazeis de extraordinário? Não fazem isto também os pagãos?” (Mateus, Capítulo 5, versículos 38 a 47).


  O filho de Deus nasceu, pelo menos é como consta, em “um deserto subtropical onde jamais nevou, mas neve se converteu num símbolo universal do Natal desde que a Europa decidiu europeizar Jesus”, branco, de cabelos longos e olhos azuis.

  A neve que a maioria de nós nunca viu e que, por incrível que pareça, muitos adoram (!?), é retratada das mais diferentes maneiras: com luzes, algodão etc. Existem, mesmo, aqueles que compram máquinas destinadas ao fabrico de pequenos flocos de neve.

  A árvore que simboliza o espírito natalino, decoração quase que obrigatória nos lares brasileiros, é um pinheiro nativo do hemisfério norte.

  Papai Noel, o outro grande símbolo que enfeita casas, prédios e ruas, nos aparece vestido de gorro, luvas e polainas em pleno e abrasador verão brasileiro, carregado, pasmem, por renas que nunca vimos na vida, pois são animais que habitam o ártico.

  Há pessoas que mandam fazer chaminés em suas casas no nordeste do Brasil, na esperança, quem sabe, que faça um frio polar, ou, é bem provável, pensando no ingresso do “bom velhinho” com seus presentes (!!!).

  O natal é, hoje em dia, “o negócio que mais dinheiro dá aos mercadores que Jesus tinha expulsado do templo”.

  As comemorações, ao menos as que interessam, são profanas, sob medida, para produzir glutões e bêbados: cervejas, vodkas, whiskys... E, é claro, champanhes e vinhos; perus, queijos, ameixas, damascos, nozes... Ah, neste natal, principalmente, seria imperdoável esquecer os panetones.

  Próximo ao natal de 1980, portanto há 29 anos, um assassino, violentamente, tirou a vida de um dos grandes ídolos da música pop, que, não obstante tenha afirmado ser mais popular que Jesus, inspirado pelos ares desta época, festejou o natal deixando-nos uma reflexão e uma mensagem de paz que eu, embora não goste de citações sem tradução, verto no original para, afinal, aproveitando-me, porque não, do natal, desejar que homens e mulheres sejam mais fraternos, mais companheiros, mais humanos, ainda que humanidade seja, também, egoísmo e competição. Se tudo isso é contraditório, comemoremos então a contradição em nossos espíritos, esperando, porém, um bom ano, com menos sofrimento no mundo:

And so this is Christmas
And what have we done
Another year over
A new one just begun…/

And so happy Christmas
For black and for white
For yellow and red ones
Let's stop all the fight…/

And so this is christmas (war is over...)
For weak and for strong (...if you want it)
The rich and the poor one
The world is so wrong…/

And, so happy Christmas
We hope you have fun
The near and the dear one
The old and the young…/

A very Merry Christmas
And a happy New Year
Let's hope it's a good one
Without any fear


Obs. As frases entre aspas são de Eduardo Galeano. A canção Happy Xmas (War Is Over) é de John Lennon.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

SOBRE A GREVE NO SERVIÇO PÚBLICO

   Não é incomum a altercação sobre as possibilidades do direito de greve no serviço público. Mais que isso, permanecem os questionamentos sobre a própria existência de tal direito. Mesmo porque, desmitificando, de logo, a compreensão que o exercício da greve no serviço público é uma conquista intangível da democracia, cabe firmar que vários ordenamentos de países democráticos não reconhecem o direito em questão. Nos Estados Unidos, berço dos direitos civis, a greve no serviço público federal é terminantemente proibida, passível até de prisão para o grevista. Na Alemanha, cujo direito constitucional exerce forte influência no sistema jurídico brasileiro, os funcionários estatutários não podem fazer greve em razão dos princípios tradicionais da administração púbica.

   Entre nós, a Constituição de 1988 concebeu o direito de greve para os servidores públicos, porém deixou a regulamentação para a legislação ordinária que nunca foi produzida, tanto pela inércia de iniciativa do Executivo, quanto pela falta de trabalhos no Congresso Nacional. Ante a ausência legislativa as opiniões variavam ora para reconhecimento, ora para a impossibilidade do exercício do direito de greve, nesse caso por ser a norma constitucional de eficácia contida, ou seja, condicionada a existência de regulamentação legal para viger. A última posição foi sempre aceita pelo Supremo Tribunal Federal. Mas, cansado de esperar a regulamentação, o Tribunal sinalizou para aplicação da lei geral de greve destinada ao trabalhador privado (acesse aqui o MI 712). A conseqüência de toda essa mixórdia – não obstante a decisão mais recente do Pretório Excelso sobre a restrição para as funções essenciais do serviço público (acesse aqui a decisão do STF) –, é o que hoje assistimos na prática: o exercício ilimitado do direito de greve pelos servidores públicos.

   É inegável o direito dos funcionários de reivindicar melhores condições de trabalho e, sobretudo, melhores vencimentos, ou ao menos, vencimentos compatíveis com as suas respectivas funções, corrigidos em razão da espiral inflacionária, que atendam, no mínimo, às necessidades básicas de uma família. No entanto, o instrumental para uma reivindicação de tal natureza não pode colidir, em nenhuma hipótese, com os direitos e interesses dos cidadãos. É que no estado democrático de direito o conflito entre os direitos dos servidores e os direitos dos cidadãos resolve-se, sempre, em favor dos últimos. O direito do cidadão, do contribuinte, do povo a ter serviços prestados por funcionários do Estado é maior que direito de greve destes últimos. “A opção pela carreira pública é personalíssima, ninguém nela deve permanecer quando entenda lhe está sendo exigido demasiado sacrifício”. O servidor público, já se disse, “é um servidor da comunidade e não servidor de si mesmo”, seus direitos são estritamente condicionados aos seus deveres junto à sociedade.

   A ausência de legislação regulamentadora, que se faz urgente, obriga ao poder público controlar as possibilidades de greve em cada caso concreto. Não é mais possível admitir a baderna protagonizada por grupos que atingem frontalmente o cidadão e a comunidade, tampouco o ócio de servidores que simplesmente cruzam os braços enquanto são pagos pelo combalido trabalhador brasileiro. Não é mais possível transigir com os pelegos em busca de cargos e outras vantagens pessoais. Não é mais possível permitir a intromissão da politicagem que sustenta interesses próprios e eleitoreiros.

   Por óbvio, os servidores não podem ficar a mercê de déspotas ou de administradores incompetentes. É fundamental que tenham amplo acesso e participação sobre a situação orçamentária e financeira do Estado, contando com rígidos mecanismos punitivos para os maus gestores, inclusive com a imprescritibilidade das infrações administrativas e dos crimes contra o erário por eles praticados. Todavia, já não se pode olvidar que o direito à greve, se é um direito, é um direito de defesa contra o Estado-Administração e não um direito de defesa contra o povo. Só nessa assertiva temos um bom começo para delinear seus limites.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

PARA NÃO VER DEUS DUAS VEZES

   Há uma pilhéria conhecida internacionalmente que diz: “bem-aventurados os bêbados, porque verão a Deus duas vezes”. Mas, o gracejo termina, ou deveria terminar, onde começa a atividade de dirigir um veículo automotor. Há anos assistimos, já cansados, no Brasil, a divulgação dos altos índices de acidentes de trânsito com milhares de mortos e feridos. E uma das principais causas para os acidentes não é outra senão a embriaguez. A associação entre o uso de bebidas alcoólicas e a condução de veículos motorizados está relacionada, nos Estados Unidos, a 25 mil mortes e 150 mil pessoas permanentemente incapacitadas por ano. No Estado da Califórnia, estima-se que cerca de 45% dos acidentes com vítimas e 70% das pessoas mortas em acidentes de trânsito apresentavam alcoolemia sangüínea significativa, isso para não mencionar o uso de outras drogas.
 
   Entre nós, há uma estimativa mais alta, calcula-se que 75% dos acidentes de trânsito com vítimas fatais esteja relacionado com a embriaguez. É que, no Brasil, aproximadamente 40% das ocorrências policias, em geral, estão amalgamadas ao uso da bebida alcoólica. Em Alagoas, não é diferente. As autoridades policiais, os promotores e os juízes criminais são testemunhas diárias dos homicídios, lesões corporais, estupros, entre vários outros delitos, perpetrados, banalmente, sob a influência do álcool e que atingem, sobretudo, as camadas economicamente desfavorecidas da população. Aliás, é essa uma das diferenças verificadas para os crimes de trânsito, pois estes envolvem pessoas de todos os estratos sociais, embora, quem sabe senão por isso, tenham penas demasiadamente brandas, não obstante a gravidade do perigo e do dano que deles possam resultar.

   Já propusemos junto ao Gabinete de Gestão Integrada – GGI, no Governo de Alagoas, baseados em experiência do interior de São Paulo e de Pernambuco, anteprojeto de Lei para proibir, em determinados horários, a venda de bebidas alcoólicas nas localidades municipais afetadas por violência decorrente da embriaguez. Não obstante tenha sido aprovada pelo Legislativo Estadual e sancionada pelo Executivo, a burocracia policial alagoana tem dificuldades no cumprimento da restrição e setores desinformados da imprensa acusaram a Lei de descriminar a periferia, desconhecendo que o cidadão de bem que habita as regiões mais violentas seria o grande beneficiado pela medida.

   Nosso país ainda permite a veiculação de propaganda de bebidas sem limite de horário, associando o álcool às mulheres, à fama e ao viver bem, embora, por mais absurdo que seja, haja decisões que proíbam a utilização do bafômetro contra a vontade do motorista bêbado, baseadas no pífio argumento de que ninguém pode fazer prova contra si mesmo, como se não houvesse um escalonamento de normas na Constituição e o direito à vida não fosse superior a um direito processual.

   O governo federal, ainda que tardiamente, editou Medida Provisória proibindo a venda de bebidas, nas estradas federais, cujo teor alcoólico seja igual ou superior a 0,5%, o que abrange quase todos os tipos disponíveis no país – as cervejas, mais tradicionais, têm graduação a partir de 4,5%. A medida é boa e o governo do Estado deveria adotá-la para as vias estaduais o mais rápido possível. É óbvio que posições desta natureza não resolvem o problema isoladamente, como denunciam as já obtusas críticas, mas, de certo, constituem imposição, desde que haja fiscalização e punições, em favor da vida e da incolumidade física das pessoas. Precisamos fortalecer a crença de que os direitos individuais somente se sustentam quando observado o direito à coexistência. Se os borrachos pretendem ver Deus, ainda que duas vezes, que vão sozinhos na sua estrada sem volta.