domingo, 18 de abril de 2010

AQUILO POR QUE VIVEMOS

Relendo a History of Western Philosophy na tradução brasileira de Breno Silveira (História da Filosofia Ocidental. Brasília: UNB, 1982), de um dos mais importantes filósofos do nosso tempo, Bertrand Russell, voltei o interesse para a vida do próprio pensador e, em sua “Autobiografia” (publicada no Brasil pela Civilização Brasileira), descobri o escrito que segue e que, segundo penso, muito tem haver conosco.

 “Três paixões, simples, mas irresistivelmente fortes, governaram-me a vida: o anseio de amor, a busca do conhecimento e a dolorosa piedade pelo sofrimento da humanidade. Tais paixões, como grandes vendavais, impeliram-me para aqui e acolá, em curso, instável, por sobre o profundo oceano de angústia, chegando às raias do desespero.

 Busquei, primeiro, o amor, porque ele produz êxtase – um êxtase tão grande que, não raro, eu sacrificava todo o resto da minha vida por umas poucas horas dessa alegria. Ambicionava-o, ainda, porque o amor nos liberta da solidão – essa solidão terrível através da qual nossa trêmula percepção observa, além dos limites do mundo, esse abismo frio e exânime. Busquei-o, finalmente, porque vi na união do amor, numa miniatura mística, algo que prefigurava a visão que os santos e os poetas imaginavam. Eis o que busquei e, embora isso possa parecer demasiado bom para a vida humana, foi isso que – afinal – encontrei.

 Com paixão igual, busquei o conhecimento. Eu queria compreender o coração dos homens. Gostaria de saber por que cintilam as estrelas. E procurei apreender a força pitagórica pela qual o número permanece acima do fluxo dos acontecimentos. Um pouco disto, mas não muito, eu o consegui.

 Amor e conhecimento, até ao ponto em que são possíveis, conduzem para o alto, rumo ao céu. Mas a piedade sempre me trazia de volta à terra. Ecos de gritos de dor ecoavam em meu coração. Crianças famintas, vítimas torturadas por opressores, velhos desvalidos a construir um fardo para seus filhos, e todo o mundo de solidão, pobreza e sofrimentos, convertem numa irrisão o que deveria ser a vida humana. Anseio por avaliar o mal, mas não posso, e também sofro.

 Eis o que tem sido a minha vida. Tenho-a considerado digna de ser vivida e, de bom grado, tornaria a vivê-la, se me fosse dada tal oportunidade.”

domingo, 11 de abril de 2010

TRIBUNAL DO JÚRI: RETRATO DO ANACRONISMO DE UMA INSTITUIÇÃO

Na sexta (09/04) ocorreu na Escola Superior da Magistratura, um pequeno seminário sobre os novos rumos do Direito. Pretendia, com minha fala, desenvolver mais detidamente certos problemas do Sistema Penal brasileiro, em especial a questão do funcionamento do Tribunal do Júri. Mas, não deu tempo, pois lá estávamos, também, para ouvir as outras palestras e para o lançamento de dois livros. Segue, agora, parte do que desejava dizer na ocasião.

O Tribunal do Júri tem sua origem relacionada à lei mosaica dos povos judaicos, aos Areópagos e à Heliéia (tribunais judiciários gregos), e as questiones perpetuae dos romanos. É certo, porém, que a instituição, com o mínimo dos contornos atuais, manteve-se a partir de seu surgimento com a Magna Carta inglesa de 1215, fundada em uma imposição dos aristocratas feudais, que reclamavam julgamento pelos seus pares e não mais pela magistratura servil ao monarca. As revoluções das colônias americanas insurretas e a Revolução Francesa fizeram do Júri uma garantia individual, porquanto, na época, representava a possibilidade de um julgamento imparcial, afastados os juízes comprometidos com os governantes absolutistas. Por isso, ganhou corpo e passou a fazer parte da legislação de diversos países, como símbolo da liberdade.

Todavia, em face do aparecimento das teorias da separação dos Poderes e a posterior independência do Poder Judiciário, o Júri foi perdendo fôlego, sendo substituído, pouco a pouco, pela magistratura togada e pelo escabinado (uma composição de juízes leigos e togados), como é hoje na França, Alemanha e Itália, só para ficar no exemplo.

Entre nós, surge, em junho de 1822, com a competência restrita aos delitos de imprensa, influenciado pelos ideais libertários das revoluções citadas. Manteve-se em quase todas as Constituições, a exceção da Constituição do Estado Novo de 1937. Os legisladores constituintes de 1988, deslumbrados pelo ressurgir dos ares democráticos no Brasil, fizeram constar a instituição do Júri, sem a menor necessidade, no rol dos direitos fundamentais previstos no artigo 5º da Carta Federal, tratando-o como uma garantia formal, é dizer, o devido processo legal estabelecido para os acusados que tenham cometido um crime doloso contra a vida. Da forma em que figura na Constituição, somente uma nova constituinte, vez que se trata de cláusula pétrea, poderá suprimí-lo.

Torna-se, assim, difícil uma proposta voltada para extinguir a instituição, máxime quando sabemos que ela caracteriza, no Estado Democrático de Direito, a efetivação da democracia participativa no Judiciário. Porém, por mais paradoxal que pareça, tal qualidade é, ao mesmo tempo, um dos principais problemas deste tribunal.

A participação popular tem revelado a ausência de preparo e senso dos jurados, sobretudo nas comarcas mais carentes. Não obstante a existência de campanhas cívicas, as pessoas escolhidas são as primeiras a pretender se esquivar da função. Concordam que não têm conhecimento suficiente para um julgamento, alegam problemas com a sua segurança e, principalmente, fazem ver a falta de tempo, afinal todos elas, como nós, preferem dar atenção as suas tarefas profissionais cotidianas. Em tempos atuais, a comunidade não conhece os seus pares, ninguém sabe mais quem é quem. Vivemos em uma época em que mal sabemos sobre o nosso vizinho, de modo que o velho argumento do conhecimento do jurado sobre a comunidade onde vive, sobre os seus pares, perdeu muito do seu significado.

A falta de preparo dos jurados leigos, e aqui não estamos falando somente de tecnicismos, os deixa mais suscetíveis às sagacidades e artimanhas das partes. A missão de julgar exige um mínimo de profissionalismo, para além de garantias aos julgadores. Em mais de dez anos judicando no Tribunal do Júri, apreciamos inúmeros pedidos de jurados para não participarem da sessão, com as mais variadas escusas, destacando-se, entre elas, exatamente, a falta de conhecimento, de tempo e temor por represálias (da família da vítima, do réu, das testemunhas, da reação social, da exposição etc).

Imagine alguém do povo, que nunca entrou em contato com os autos, após algumas horas e todo aquele ritual medievo – repleto de jargões e pantomimas –, decidir sobre a condenação ou absolvição de um ou mais seres humanos com todas as repercussões importantes daí advindas?

Pesquisa produzida nos Estados Unidos pela Universidade de Chicago já constatou que, de cada quatro veredictos pelo Tribunal do Júri, um está flagrantemente errado. Como já acentuou, em passagem lúcida, Aury Lopes Júnior, a ausência de estrutura psicológica dos jurados leigos, “aliados ao mais completo desconhecimento do processo e de processo, são graves inconvenientes do Júri”. Os jurados, diz ele, “carecem de conhecimento legal e dogmático mínimo para a realização dos diversos juízos axiológicos que envolvem a análise da norma penal e processual aplicável ao caso, bem como uma razoável valoração da prova. O próprio sentire - essência do ato de decidir - exige uma prévia cognição e compreensão da complexidade jurídica, sendo inadmissível o empirismo rasteiro empregado pelo Júri.... a situação é mais grave se considerarmos que a liberdade de convencimento (imotivado) é tão ampla que permite o julgamento a partir de elementos que não estão nos autos."

É chegado o momento, no ano da Justiça Criminal – assim designado pelo CNJ –, de discutirmos e propormos modificações na forma de funcionamento e, com certeza, na composição do Júri. Parece-nos que a participação de juízes togados no Conselho de Sentença, mesmo minoritariamente, implicaria em uma sensível melhora nos veredictos.

O Júri carece de adaptação aos tempos “pós-modernos”. Sua função histórica – permitir a imparcialidade dos julgamentos e evitar os abusos advindos da concentração de poder sob o absolutismo – foi exaurida com a independência do Poder Judiciário. Os rituais anacrônicos, a repetição da instrução durante suas duas fases, a multiplicidade dos recursos, fizeram dele um paquiderme diante de uma sociedade que exige, cada vez mais, velocidade e eficiência. A teatralidade, tantas vezes piegas, não impressiona sequer os acadêmicos. São poucos os debates concentrados na causa e no direito a ela aplicável e, recorrentes, as falas enfadonhas, carregadas de um gestual risível, que, não raro, extrapola em desvios éticos.

O Tribunal do Júri, ainda que empolgue alguns pelo malabarismo e sutileza de raciocínio de defensores e acusadores, pelo apelo midiático, pelo destaque no cinema americano – tão distante da realidade daquele país –, vem se convertendo, entre nós, em um símbolo do anacronismo e da ineficiência do Sistema de Justiça Criminal.